domingo, 23 de janeiro de 2011

O inimigo mora ao lado?

Violência contra a mulher: O inimigo dorme do lado
Por Por Michelle Rusche 26/11/2002 às 10:37

Atos de violência contra mulheres ocorrem, com maior incidência, dentro de seus próprios lares e os agressores são maridos, namorados ou companheiros.
Quando se fala em violência, principalmente contra a mulher, depara-se logo de cara com falta de dados e impasses jurídicos que dificultam traçar um retrato completo da violência. Porém podemos ter uma idéia do problema. A Constituição de 1988 determina: ?homens e mulheres são iguais perante a Lei?. Em contrapartida, na prática a lei é outra. Homens cumprem penas alternativas por crimes de violência contra a mulher por meio do pagamento de cesta básica; de outro lado, mulheres são presas e agredidas por reagirem à violência contra elas.

Questões como: quem são os agressores, qual a razão das agressões, quantas mulheres sofrem com a violência doméstica não são contabilizadas oficialmente nos boletins de ocorrência das Delegacias da Mulher. Constam nestes relatórios apenas estatísticas sobre tipos de violência sofrida, e estes ainda deixam margem a dúvidas porque muitas vezes as agressões são registradas de forma branda e sem condizer com a realidade, seja por falta de conhecimento da vítima seja por falta de melhor caracterização dos crimes específicos contra a mulher.

Com o objetivo de levantar dados sobre esta questão, a Fundação Perseu Abramo, por meio do Núcleo de Opinião Pública, investigou 2.500 mulheres sobre diversos temas envolvendo a condição da mulher, entre eles o da violência, para a pesquisa ?A mulher brasileira nos espaços público e privado?, realizada em 2001.

Os resultados mostram que o marido é o maior agressor, apontado como responsável por 70% das quebradeiras, 56% dos espancamentos e 53% das ameaças com armas à integridade física. Em segundo lugar aparece o ex-marido, ex-companheiro, ex-namorado como autor das agressões, revela a pesquisa da FPA.

Daí vem a denominação ?violência doméstica? ou ?violência de gênero?, por ser na maioria das vezes praticada pelo marido ou companheiro da mulher. Esta forma tem incidência maior do que a violência das ruas, ou violência urbana: 19% já sofreram algum tipo de violência e 43% são vítimas da violência sexista.

Das mulheres que sofrem violência sexista, 33% disseram serem vítimas de violência física: ameaça ou cerceamento (24%), agressão (22%) e estupro ou abuso sexual (13%). Por trás disto está ?uma relação de força, o poder de dominação do homem e a submissão da mulher?, defende a União de Mulheres, uma entidade criada para auxiliar vítimas de violência. ?Os papéis sociais impostos a homens e mulheres, reforçados por culturas patriarcais estabelecem relações de violência entre os sexos?.

Razões
Para as mulheres entrevistadas pela pesquisa da FPA, as razões pelas quais são agredidas revestem-se de explicações simplificadas. Acredita-se que o álcool e o ciúme são os maiores determinantes para os atos de agressão. O ciúme é apontado por 21% das mulheres e distúrbios psicológicos, seja pelo álcool ou pela agressividade, por 32%. O machismo foi apontado por 14% das mulheres (NOP/FPA 2001).

Mas para quem estuda e pesquisa este assunto, a razão maior das agressões é outra. ?A maioria das mulheres justifica que foram agredidas porque seus maridos estavam bêbedos e não respondiam pelos seus atos?, afirma Graziela Acquaviva Pavez, diretora da casa Eliane de Grammont de auxílio às mulheres vítimas de violência e mantida pela Prefeitura de São Paulo. Atrás deste disfarce há uma razão primordial. ?O homem bate na mulher por causa de problemas psicológicos, como insegurança ou impotência. Diante desse problema, ele bebe e bate na mulher para tentar se manter superior?, explica.

Outra estudiosa do tema, a socióloga e advogada Heleieth Saffiotti, segue a mesma linha de raciocínio. ?O papel mais importante do homem na sociedade capitalista é o de provedor. É ele quem define a virilidade. Como o desemprego é muito grande, ele experimenta, quando está sem emprego ou quando a mulher trabalha e ganha mais do que ele, um sentimento com o qual não sabe lidar, que é o sentimento da impotência. A violência ocorre quando aparece este sentimento?.

Violência psicológica
A violência doméstica não se manifesta apenas por meio de agressões físicas, sob a forma de tapas e empurrões (apontada por 20% das mulheres). Muitas sofrem com os maus tratos causados pela violência psíquica, como xingamentos, ofensa à conduta moral (18%) e com ameaças através de coisas quebradas, roupas rasgadas, objetos atirados e outras formas indiretas de agressão (15%).

É o caso de Heliane Araújo, 30, que é casada há 15 anos e sofreu por muitos anos com os xingamentos e agressões constantes do marido. Em uma das brigas rotineiras ela teve a clavícula quebrada e perdeu o emprego de doméstica. Hoje o casal faz terapia individual e conjunta para continuarem a viver juntos cuidando dos dois filhos, um menino de 13 e uma menina de 10 anos. ?Quando eu estava sofrendo, eu não queria criar meus filhos sem pai. Não queria depender da minha mãe?, explica ela, quando perguntada por qual motivo procurou ajuda somente agora.

Este caso ajuda a entender como (até) a violência mais ?leve? causa sérios danos psicológicos à mulher e também como, mesmo assim, elas resistem em deixar o seu lar mesmo vítimas dessa injustiça e de outras mais sérias. A dificuldade em denunciar e levar um processo na Justiça até o final são outros impasses da questão que vamos tratar a seguir.

Círculo do silêncio
Ainda é muito pequeno o número de mulheres que procuram ajuda ou denunciam a ocorrência da violência. Segundo a pesquisa da FPA, a mãe, os familiares e os conhecidos são os primeiros a serem avisados e, na maioria dos casos, somente quando a violência atinge índices extremos. 55% das denúncias informais se dão por ameaça à integridade física com armas de fogo; 53% por espancamento; 46% ameaça de espancamento; 44% tapas e empurrões e 43% insinuações e xingamentos que ofendem a conduta moral.

Já as denúncias oficiais registradas principalmente em Delegacias de Polícia e da Mulher caem para 31% para ameaça à integridade física com armas de fogo; 21% para espancamento com marcas, fraturas ou cortes e 19% para ameaças de espancamento da própria mulher e dos filhos.

Por trás destes dados há uma realidade que precisa ser mostrada. ?Uma mulher que vai à delegacia, denuncia a violência, entra com processo na Justiça e ganha, o que acontece? O marido paga a pena alternativa com uma cesta básica e vai para casa, a mesma para onde ela também vai. Desta forma acaba sendo vítima de mais violência?, conta Tatau Godinho, diretora da Coordenadoria Especial da Mulher da prefeitura de São Paulo.

Cultura da violência
No Brasil, a lei 9.099/95 do Código Penal determina que a violência contra a mulher é crime doloso e estabelece penas alternativas para condenações de até um ano. Estas penas são aplicadas aos agressores de mulheres e têm sido pagas por meio de R$ 30, R$ 60 ou uma cesta básica.

?A pena alternativa só faz sentido se tiver caráter pedagógico. Ela só é válida se reeducar o agressor. Por que, se ele é agressivo e é solto, ele chega em sua casa e diz que ela vai tomar duas surras por semana e não mais uma. Então na verdade quem está pagando a pena alternativa é a mulher?, defende Heleieth Saffiotti.

A pesquisadora acredita que as mulheres, ?quando procuram a delegacia, não estão querendo a separação, querem apenas que seus maridos tomem jeito?. Desta forma é muito importante para resolver o problema que o agressor trabalhe a seguinte questão: ?por que eu bato??. ?O que é violenta é a relação. Se interferir em uma das partes, a relação não muda. E só se a relação mudar é que conseguiremos construir uma sociedade menos injusta?, afirma.

Mas enquanto não houver esta reeducação, essa mudança da relação, as mulheres retornam para os seus lares para conviver com a violência. A experiência de Márcia Valéria, coordenadora do abrigo Helenira Rezende de Souza Nazareth da prefeitura de São Paulo, com as 10 mulheres que passaram pelo serviço em 2001, é a de que quatro retornaram para os seus lares. ?Elas dizem que seus maridos prometeram não bater mais e retornam. Não adianta a gente dizer que já viu este filme n vezes. Elas vão e voltam a procurar o serviço mais tarde?, conta. Das seis mulheres que não retornaram algumas ainda vivem do abrigo ou conseguiram se virar sem o marido, isto porque estavam convencidas de que ao retornar seriam mortas.

Romper com a relação patriarcal entre os sexos masculino e feminino não é nada fácil e Márcia Valéria acredita que o trabalho não pode ser menos efetivo por causa da existência da idéia de que a mulher gosta de apanhar. ?É muito difícil as pessoas perceber o quanto a questão está enraizada na questão cultural e o quanto é difícil mexer. Então esse vai e volta faz parte de um processo até poder ir e não voltar?.

Impasses jurídicos
A mulher que sofre algum tipo de violência doméstica precisa ir pessoalmente à Delegacia de polícia ou da mulher para registrar o fato. Teoricamente ela é orientada a seguir para a abertura de um processo judicial ou é encaminhada aos serviços especiais com ajuda nas áreas jurídica, social e psicológica. Este trabalho é feito na cidade de São Paulo pela casa Eliane de Grammont e em Porto Alegre pela casa Viva Maria, para citar apenas dois exemplos.

Para os casos em que há risco de vida para a vítima, existem abrigos que recolhem tanto as mulheres como familiares também ameaçados, por um tempo determinado. Até que elas possam reconstruir a sua vida. No Brasil existem aproximadamente 12 abrigos, o que é muito pouco para dar conta de todas as vítimas.

Em todos estes serviços, se for da vontade da vítima, ela pode abrir um processo mas depara-se logo de cara com a seguinte dúvida: ?Se eu quero representar? O que é representar??. Pois tudo é tratado com termos jurídicos pouco inteligíveis até mesmo para as mulheres mais esclarecidas.

Além disso, as que conseguem dizer ?sim, quero representar?, passam por uma sessão de constrangimento, porque terão de dizer todas as suas queixas na presença do marido. ?A mulher que apanha todo dia é uma mulher fragilizada, com a auto-estima no chão, e sente-se intimidada pela presença do agressor?, explica Heleieth Saffiotti, que realiza uma pesquisa sobre as condições nas quais se dão as audiências de mulheres vítimas de violência.

Foi verificado também que nem sempre elas acontecem em salas particulares, com a presença do juiz e também do promotor e advogado da vítima, o que é exigido em Lei.

Combate à violência
Outra dificuldade que faz as mulheres procurarem pouco pela ajuda oficial é o número reduzido de delegacias, que não dão conta de atender toda a população, principalmente ao que se refere à orientação de locais onde conseguir ajuda psicológica e jurídica.

Tatau Godinho apresenta alguns projetos que estão sendo encaminhados pela prefeitura de São Paulo para combater a violência contra a mulher. Uma das preocupações é treinar profissionais da saúde (médicos, enfermeiros e psicólogos) para dar, além do atendimento médico às vítimas de violência, o direito de denunciar. ?A rede de saúde precisa ter locais especializados para realizar os atendimentos que não apenas atenda os casos de violência, como resolva o problema?, conta.

?Se a gente consegue abrir mais centros, na proporção de uma cidade de São Paulo, por mais que eu possa dizer que vai ter um crescimento de 500% nos atendimentos, que é muito, ainda é muito pouco diante da necessidade. Mas não bastam abrir apenas novos centros, é preciso uma estrutura de apoio onde a mulher se sinta segura para se contrapor a uma relação de violência. Isso significa mudança no Judiciário, condições de habitação, acesso a emprego, creche para deixar os filhos e poder trabalhar fora?, explica Tatau Godinho.

Ter informações sobre os direitos e cultivar o respeito mútuo entre as pessoas ainda é a principal forma de combate da violência. ?É muito importante a mulher saber que deve denunciar a violência logo nas primeiras manifestações de desrespeito que ocorram na relação ou na sociedade, para que não venha a ser vítima de agressões maiores?, afirma Tatau Godinho.

(texto publicado na página da Fundação Perseu Abramo http://www.fpabramo.org.br/leiamais/violencia.htm)

Nenhum comentário: